segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Filé Mignon ao Gás Acabando

foto: rodrigo gaion


Cozinhar para 10 pessoas não é tarefa difícil, é só saber calcular as quantidades. O difícil é fazer uma comida boa e ainda conseguir ser uma pessoa integrada socialmente e não um ser alienado que fica na cozinha suando enquanto os outros tomam banho de piscina. Arquiteturas com cozinhas integradas ajudam. Mas quando se assume o comando das panelas, sempre há um pouco de solidão e alienação, é inevitável. Especialmente se você é uma pessoa capricornianamente centralizadora como eu.

Os amigos fingem que querem ajudar. Alguns querem mesmo. Eu aceitei que lavassem a salada, até por que não gosto dessa tarefa que enruga meus dedos e na qual sou totalmente incompetente, deixando passar insetos e bacterias em meio às folhas. Mas com exceção de tarefas desagradáveis ou lavagens de louça, quem cozinha não quer ajuda. Nem muitos palpites. A ordem das coisas, o tamanho do corte dos legumes, o tempo de cozimento, as quantidades, são decisões que só o cozinheiro acredita poder tomar, mais ninguém.

Esses momentos coletivos sempre tem também aquele pequeno stress, aquela pressão, aquela expectativa, aquela cobrança interna: o prato tem que ficar bom. Afinal, "ouvi dizer que você cozinha muito bem", "esse filé mignon é famoso" e comentários do gênero que a gente aceita com um sorriso de falsa modéstia enquanto chora (uma verdadeira faxina lacrimal) por conta da cebola.

Eu estava em Gonçalves, Minas Gerais, no lugar mais lindo do mundo e em boa companhia, e para não ter muito trabalho, quis deixar tudo encaminhado antes de todo mundo acordar (aproveitando meu relógio biológico de padeiro). Minha idéia começou pelos acompanhamentos: as famosas Batatas Natalie (receita parcialmente roubada das "batatas rústicas" da Lanchonete da Cidade). O segredo é cozinhar as batatas antes de assar. Assim elas ficam cremosas por dentro e crocantes por fora. Fiz com as pequenas, aquelas que normalmente são servidas frias, à vinagrete. Cortei em metades. Mas o tamanho tanto faz. Se forem grandes é legal cortar num tamanho parecido com gomos de laranja ou maiores, whatever. O essencial é cozinhar até ficarem moles (não muito moles) e sempre, sempre, com casca. Eu cozinhei lentamente, durante o café da manhã, no fogão a lenha. Espalhei na travessa e acrescentei alecrim fresco, sal grosso, alho com casca e MUITO azeite de oliva.

Este é o aspecto das Batatas Natalie, antes de irem pro forno (onde ficaram uma hora e meia).





Outro acompanhamento clássico das minhas carnes é a farofa/passoca de banana e cebolinha. Criação que surgiu num dia em que não tinhamos cebola. Consiste em muita cebolinha picada, refogada na manteiga. Banana cortadinha e farinha Deusa (segundo uma amiga, a farinha campeã em ebós realizados, portanto, indispensável). É preciso esmagar a mistura com a colher de pau até formar uma pasta farinácea. Às vezes tem que pôr mais manteiga e/ou azeite, porque se quer uma farofa molhada. Sal. Deixar no fogo baixissimo para ir formando uma crosta no fundo. Aos poucos, virar com a colher, até ficar com uma consistência entre pastosa e levemente queimada.

Surgiu outro acompanhamento, pelas mãos generosas de outro amigo, que veio a calhar, trazendo côr e fibra. Folhas de beterraba refogadas qual couve, com cebola picada e um segredinho que ele se recusou a contar. Ficou delicioso. Folhas roxas, crocantes, levemente apimentadas.

O filé era um pouco magro demais, era o tal miolo do filé mignon, carne light, excelente qualidade. Não tinha praticamente gordura. Mais tarde essa qualidade se tornou, do meu ponto de vista, o ponto fraco do prato. Como tempero, fiz pequenas incisões com a ponta da faca e enfiei dentes de alho inteiros em toda a peça. Reguei com azeite, espalhei orégano fresco, pimenta do reino, geléia de capim santo, e ao longo de toda a manhã, vinho do porto, que foi sendo absorvido de boa vontade pela carne.

As meninas antes de entrar na câmara dos infernos:




O almoço foi um sucesso, começando pela salada recém colhida, com uma beterraba sanguinolenta, cervejinhas geladas e muitas risadas. Mas após a salada o filé começou a demorar um pouco demais. Abri o forno depois de 30 minutos assando, e a carne estava com uma tonalidade cinza, cara de cozida. Começou minha decepção. Pensei "vai ficar cozido, sem gosto, ruim". Após mais 15 minutos (em que todos fingiam que a demora era natural e repetiam a salada), olhei de novo e tive que tomar uma decisão difícil: cortar a peça pela metade e verificar o ponto da carne. Por fora ela não me dizia nada! O ponto estava quase bom, mas tinha cor de burro quando foge.

Ai veio a constatação, ou melhor, as constatações: o gás estava acabando e a carne era magra demais. O calor não estava selando a carne e ela corria sérios riscos de ressecar. Minha solução desesperada foi untar as peças com a redução de vinho do porto que extrai do tempero e um pouco de manteiga e voltar pro forno, calor máximo, por mais 10 minutos. O prato foi salvo! Arrancou suspiros, todos repetiram. Fiquei feliz, mas no fundo não muito, olhei para a carne no meu prato com desconfiança, eu e ela sabiamos que algo não tinha dado certo, que esse assado podia ter ficado com um caráter muito mais orgiástico. Que isso sirva de lição: carne light nunca mais! é um contrasenso que não tem como dar certo, a não ser que se esteja doente. Verificar o gás antes de planejar um assado! Nunca servir a entrada antes de saber exatamente quanto tempo vai demorar o prato pincipal!

E aqui mostro como ficou o prato. Nada mal, na verdade.



Filé Mignon ao Gás Acabando, com Batatas Natalie, Passoca de Banana e Cebolinha

(Participação especial das Folhas de Beterraba qual Couve do Gaion)


12 comentários:

Unknown disse...

carne light realmente soa algo broxante..

Vera Bonilha Atriz disse...

Eu estive lá, e o almoço foi um sucesso! Peguei o rabinho, quero dizer, a "pontinha da carne" aquela parte que fica bem crocante e salgadinha.
Ai, só de lembrar...
Agora,bom mesmo estava o humor da kitchen tentando nos distrair do tempo.
Sempre sofisticado e bem temperado.

SENSACIONAL!!!

Ana Dupas disse...

não vou nem comentar...
só espero um novo convite pra comer. Até hoje tenho a lembrança aromática-suave com doses crocantes das lascas de côco da sopa thai... hum...
clica no meu nome e tem um blog!
beijos!!!

Anônimo disse...

é mesmo! a sopa thai!
vou fazer um post sobre sopas qualquer hora!

Anônimo disse...

bom, mesmo quando não sái perfeito como ela queria, ainda é inspiradíssimo e eu não estou nem aí, já fui repetir e estou voltando no mesmo suspiro...

Anônimo disse...

salve salve!

a descrição da comida é tão boa quanto a própria.
tudo muito bom. aplaudo especialmente a passoca, que tem gosto de infância.
adorei tbm o nome das beterrabas qual couve :)
aqui tem um link pra uma foto sua fazendo o deus ex machina de vinho do porto. e da mesa (bem) posta, que acho tbm importante pro sucesso de um almoço:

http://www.flickr.com/photos/in_vrbes_perditvm/2087220586/

http://www.flickr.com/photos/in_vrbes_perditvm/2087220084/

bjs, foi super o finde!

Natalia Mallo disse...

e agora com fotos da mesa (bem) posta do próprio autor das Beterrabas qual Couve!

Mariá disse...

carne light não dá.

a vida é uma só!

Anônimo disse...

Genial a narrativa do desespero do gás acabando, a carne ressecando e a solução que só mesmo quem entende de cozinha poderia dar. adorei.

Ana Dupas disse...

passoca...? não é paçoca?

Natalia Mallo disse...

passoca, paçoca... quem pode dizer? hea controvérsias...

Anônimo disse...

tbm achei que fosse paçoca, mas como a receita era sua, achei seu direito que a grafia também fosse.