quarta-feira, 29 de julho de 2009

Alcachofras da vovó.

Quando eu era criança, minha avó materna preparava um prato que se chamava "alcauciles del infierno". O pai dela, meu bisavô que nunca conheci, era um libanês que chegou na Argentina sem nada. Formou familia, teve a minha avó e depois se fez passar por morto para poder começar uma nova vida com outra mulher. Muitos anos depois a minha avó viu ele, bem velhinho, no caixa de uma loja de tecidos do Once (o Bom Retiro portenho). Que morto, que nada. O velho estava vivo e com uma mulher chatérrima berrando no ouvido dele. Ela pagou a conta e saiu sem falar com o pai, e ele não a reconheceu. Ficou por isso mesmo.

A avó Haydeé não era a avó "cool" (a outra era, ainda vou falar dela), na verdade era meio bruxa. Prometeu pros meus pais, que namoravam e tinham 20 anos, que daria um apartamento se casassem. Casaram e não ganharam nada. Bom, ganharam 3 filhos e um divórcio escandaloso. Ela gostava de carteado, whisky, pisco e de sessões de espiritismo. Era um pouco sinistra e estava sempre doente, fazendo cirugias. Era tão sinistra que para me assustar meus irmãos me falavam que a alma dela (que nem tinha morrido ainda) ia vir voando pela janela, vestindo aquela calça marrom (era estéticamente sinistra também). Vivia de acessórios para sapatos, brincos, etc, que vendia na loja chique de seu amante judeu, na Av. Santa Fé. E apesar de tudo isso, era a avó mais presente, a que dava mais presentinhos e com a que mais convivi.

Ela fazia essas alcachofras que eram assadas com molho de tomate, e vinham à mesa numa travessa fumegante. Nunca mais na vida comi alcachofras assim, quentes, no contexto de um prato. Só cozidas e passadas no molho, que preparo como meu pai me ensinou: mostarda dijon, limão, azeite de oliva, sal e pimenta. No fim, retiro o fundo (corazón, mais poético em espanhol), corto em pedacinhos, e jogo dentro do potinho do molho. Adoro.

Mas ontem fiz uma releitura das alcachofras infernais. Coloquei para cozinhar e fui ver uma tevezinha. Estava exausta, de ter acordado às 6 da manhã, feito coisas o dia inteiro, muito computador, muito carro, muitas emoções. Estava passando um filme legal, "A taberna das ilusões perdidas", com o gato Tony Curtis fazendo papel de saxofonista naiff tentando a vida em New York. Bom, fui me aconchegando, peguei no sono. Entre sonhos, pensava... "puxa vida, tem alguém fumando cigarro perto da janela da minha casa, como é que pode". Ai dormia mais um pouquinho e logo pensava: "mas quem pode estar fumando aqui tão perto, a ponto de eu sentir tanto cheiro?". De repente levantei num pulo: "A alcachofra!!!". Corri a tempo de desligar o fogo e evitar um incêndio. Mas olha que interessante. A alcachofra 100% carbonizada. Manteve seu formato original, mas estava totalmente preta. Espetei com o garfo e ela virou pó, como tudo ha de virar nessa vida, inclusive eu.

Essa sim foi uma alcachofra dos infernos. Joguei fora, com panela e tudo.



MK, chovendo, com a casa esfumaçada.

8 comentários:

Tour Digital disse...

Roteiro de curta certamente... Otimo.. bjs Deia

老丹童 disse...

mesmo do fracasso culinário das alcachofras carbonizadas você fez boa literatura. quando se entra na cozinha nem sempre o que sai é o que planejamos. pode ser melhor. beijos.

Clarice Toledo disse...

Cozinheira, cantora, compositora, violonista e agora escritora?
Vc, às vezes, é irritante :)
Ótimo post!
P.S.: Aqui onde moro são produzidas as melhores alcachofras.
Já viu em floração? É azul.

Anônimo disse...

É.

BIA disse...

Coração de alcachofra em pó...
Faz bem pra alma, emagrece e hidradata a pele?

Anônimo disse...

Tá parado este blog.

Anônimo disse...

É tá parado como se estivesse sem fome. Devia voltar. Quem gosta de ler o blog sente falta.

Natalia Mallo disse...

esses comentários anônimos me lisonjeiam muito! em breve escrevo mais... deixa só eu fazer a digestão.